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Nosso Pai.

  • Lucila Moreira Silveira
  • 20 de set. de 2022
  • 4 min de leitura

Atualizado: 17 de mai. de 2023


"Nosso Pai era um homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sido assim desde mocinho e menino, pelo que testemunharam as diversas sensatas pessoas, quando indaguei a informação. Do que eu mesmo me alembro, ele não figurava mais estúrdio nem mais triste do que os outros, conhecidos nossos. Só quieto. Nossa mãe era quem regia, e quem ralhava no diário com a gente - meu irmão e eu. [pequena licença poética; no original tem mais um irmão.] Mas se deu que certo dia, nosso Pai mandou fazer para si uma canoa."


Bom, nosso Pai era um espírito exuberante, não no sentido de gabar-se. Curioso, inquieto, embora tranquilo. Creio que sua inquietude provinha de sua curiosidade.


Bom, sendo assim tão indagador, acredito que nosso Pai, se tivesse de mandar fazer para si uma canoa - ele que sequer sabia nadar -, estudaria todos os mapas oceânicos que conseguisse e embicaria a navegação rumo a Cuba.


Seu sonho era conhecer Cuba e os países do então Bloco Comunista. Depois, é claro, ele visitaria Paris, a mítica Paris.


Afinal, o fascínio da Revolução Cubana - e todos que pesquisam a respeito, tem variadas informações históricas de que a Cuba de Fulgencio Batista era uma espécie de playground e bordel de americanos milionários - era e é visto como uma saga heróica, mística, de jovens idealistas, de longos cabelos e barbas mosaicas, que desceram da Sierra Maestra no fim dos anos 50 para libertarem o País e distribuir justiça social. O que ainda é um sonho em vários países pequenos e nem tão pequenos assim.


Fidel, el jefe, seu irmão mais velho, Ramón, e o caçula, Raúl, eram todos cultos, filhos e netos de latifundiários. Ramón, aliás, brincou em entrevista ao jornalista brasileiro Fernando Morais, depois narrada em seu livro "A Ilha", que seu próprio pai, se ressuscitasse e visse todas as suas propriedades estatizadas por seus filhos, morreria novamente.


Sim, meu Pai foi o primeiro homem lindo, sorridente e comunista que conheci. Lembro-me que o vi mesmo, pela primeira vez, quando estava deitada na rede, doente. Estavam ambos, mãe e pai, debruçados na minha rede. Minha mãe com semblante de extrema preocupação, meu pai sorrindo, como se quisesse instilar-me confiança, em meio aos meus quase 40 graus de febre.



(Essa sou eu, aos 3, 4 anos de idade)

(Meu irmão Marco Antonio, aos 2 anos e uns meses.)


Perdi as contas de quantas vezes nosso Pai correu durante a madrugada, pelo Centro de Fortaleza, em busca de um soro, umas gotas de remédios para diminuir as dores e a febre que me afligiam. E a meu irmão também.


E, também, quando ele corria com nossa Mãe, para que eu tomasse aerossol no Hospital Albert Sabin.


Até que um dia, ele foi obrigado por um médico a fazer um "pé de meia", para que eu finalmente fosse operada de amigdalite. (O SUS nem era um sonho, ainda. Dizem que não funciona. O aviso foi duro: "Ou o senhor opera essa menina, ou ela vai morrer em menos de um ano, de focos de infecção no sangue".


E assim foi. A cirurgia correu muito bem. Aquele, provavelmente, foi um dos anos mais felizes de minha vida. Outros foram também. Se é verdade que "Les familles heureses se ressemblent toutes" ("Todas as famílias felizes se parecem") como escreveu Tolstoi, então a minha ilha de amor passava despercebida, em pleno Centro de Fortaleza, desde 1968 até 1987, quando finalmente nos mudamos, para uma casa alugada, no Bairro de Fátima. Para lá nos mudamos, e transferimos nossa ilha de amor.


O curioso é que anos depois, quando nossa senhoria nos pediu a casa de volta, nosso Pai foi violentamente atacado, não pela senhoria, mas por sua nora (uma senhora de cujo nome não lembro), ela visitou a oficina de nosso Pai, e disse que ele, com aquela espelunca, não teria condições de morar em uma casa com "duas garagens", como falou então. Curioso, porque nosso Pai jamais atrasou um só aluguer. Imaginem o que diria ela, se soubesse onde moramos agora.


"But let be the bygones, gone", como diriam os ingleses e os americanos ("Deixemos que o passado seja passado").


Meu Pai influenciou-me em quase todos os aspectos de minha via, do meu gosto musical, passando pela minha cinefilia e, claro, em minha educação sentimental e política.


Nosso Pai nasceu em 18 de setembro de 1921, filho de Leovigildo Pedrosa da Silveira (então "coletor" estadual de impostos) e Maria de Paiva Silveira, dona de casa.


Pela data, ele nasceu pouco depois de 17 de outubro de 1917: a data da Revolução que implantou o Comunismo na Rússia e renomeou o País para União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Meu avô, a quem lamentavelmente não conheci, era homem bastante inteligente, curioso e lia tudo. Aliás, lembro-me de meu Pai rindo, quando me flagrou lendo um jornal e escovando os dentes, lá por volta de 1989; eu coloquei o jornal apoiado sobre o pequeno parapeito da pia e tapei o espelho. Ele me disse que reconheceu o meu avô, fazendo a mesmíssima coisa.


A partir de 1917, o mundo se dividiu; um ar de esperança soprou, especialmente nos países subdesenvolvidos.


Nosso Pai, assim que aprendeu a ler, começou a bisbilhotar a biblioteca de meu avô, junto com seu irmão caçula, Pedro Hudson. Meu avô teve três filhos homens: Pedro Edison, Pedro Wilson e Pedro Hudson (ele reconheceu que os Estados Unidos tomaram o lugar de primeira Potência Mundial e nomeou meu Pai segundo o homem genial: Thomas Alva Edison. Pedro Wilson, naturalmente para homenagear o Presidente Woodrow Wilson, criador da Liga das Nações e Pedro Hudson, a partir da Geografia (Hudson River, Hudson Bay, acredito). Estranha família, misto de americanofilia e ao mesmo tempo, estudiosa das ideias comunistas.


Meu avô teve duas filhas: Lucy e Leonor, ambas lindas e ambas inteligentes. Discorrerei sobre as duas adiante. Tia Lucy foi a primeira pessoa (fora meus pais, é claro) que falou sobre a minha, digamos, não fealdade. Tia Leonor está entre nós, graças a Deus.


Este artiguinho começou a ser escrito em meados de setembro de 2022. Só o publico agora, porque imensas emoções afloraram. E doces recordações. E tristes lembranças. E alguns arrependimentos. Às vezes acontece, quando é o caso de uma infância muito feliz, uma adolescência insegura e uma idade adulta cheia de hesitações e umas poucas conquistas. De lá para cá, chorei muito, sonhei muito. No entanto, tenho certeza de que nosso Pai se orgulha de nós. Seus filhos.

 
 
 

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